Wednesday, May 05, 2010

Odes

Tu não procures - não é lícito saber - qual sorte a mim qual a ti
os deuses tenham dado, Leuconoe, e as cabalas babiloneses
não investigues. Quão melhor é viver aquilo que será,
sejam muitos os invernos que Júpiter te atribuiu,
ou seja o último este, que contra a rocha extenua
o Tirreno: sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança,
pois a vida é breve. Enquanto falamos, terá fugido
ávido o tempo: Colhe o instante, sem confiar no amanhã.
Horácio

Sunday, January 17, 2010

Realidade

Talvez chegues tu a ver
que só o nada é real
e que a partir de não ser
te construirás total.

Agostinho da Silva

Friday, January 01, 2010

Resistir

O pior é a vertigem.
Na vertigem não se frutifica nem se floresce. A característica da vertigem é o medo, o homem adquire um comportamento de autómato, deixa de ser responsável, deixa de ser livre, já nem reconhece os outros.
Encolhe-se-me a alma ao ver a humanidade neste comboio vertiginoso em que nos deslocamos, ignorantes atemorizados sem conhecermos a bandeira desta luta, sem a termos escolhido.
O clima de Buenos Aires mudou. Nas ruas, homens e mulheres apressados avançam sem se olharem, dependentes do cumprimento de horários que põem em perigo a sua humanidade. Já não há lugar para aquelas conversas de café que foram um traço distintivo desta cidade, quando a ferocidade e a violência ainda não a tinham convertido numa megalópole enlouquecida. Quando as mães ainda podiam levar os filhos às praças ou a visitar os mais velhos. Será que se pode florescer a esta velocidade? Uma das metas desta corrida parece ser a produtividade, mas serão estes produtos verdadeiros frutos?

O homem não pode manter-se humano a esta velocidade, se viver como um autómato será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão inseparável da vida do homem como a sucessão das estações é inseparável das plantas, ou do nascimento das crianças.
Estamos no caminho mas não a caminhar, estamos num veículo sobre o qual nos movemos incessantemente, como uma grande jangada ou como essas cidades satélites que dizem que haverá. E ninguém anda a passo de homem, por acaso algum de nós caminha devagar? Mas a vertigem não está só no exterior, assimilá-mo-la na nossa mente que não pára de emitir imagens, como se também fizesse zapping; talvez a aceleração tenha chegado ao coração que já lateja num compasso de urgência para que tudo passe rapidamente e não permaneça. Este destino comum é a grande oportunidade, mas quem se atreve a saltar para fora? Já nem sequer sabemos rezar porque perdemos o silêncio e também o grito.

Na vertigem tudo é temível e desaparece o diálogo entre as pessoas. O que nos dizemos são mais números do que palavras, contém mais informação do que novidade. A perda do diálogo afoga o compromisso que nasce entre as pessoas e que pode fazer do próprio medo um dinamismo que o vença e que lhes outorgue uma maior liberdade. Mas o grave problema é que nesta civilização doente não há só exploração e miséria, mas também uma correlativa miséria espiritual. A grande maioria não quer a liberdade, teme-a. O medo é um sintoma do nosso tempo. A tal extremo que, se rasparmos um pouco a superfície, poderemos verificar o pânico que está subjacente nas pessoas que vivem sob a exigência do trabalho nas grandes cidades. A exigência é tal que se vive automaticamente sem que um sim ou um não tenha precedido os actos. A maioria da humanidade é empregada de um poder abstracto. Há empregados que ganham mais e outros que ganham menos. Mas quem é o homem livre que toma as decisões? Esta é uma pergunta radical que todos temos de nos fazer até ouvirmos, na alma, a responsabilidade a que somos chamados.

As dificuldades da vida moderna, o desemprego e a sobrepopulação levaram o homem a uma preocupação dramática com o económico. Do mesmo modo que na guerra a vida se debate entre ser soldado ou estar ferido num hospital, nos nossos países, para uma infinidade de pessoas, a vida limita-se a ser trabalhador a tempo inteiro ou ser excluído. É grande a orfandade que se propaga nas cidades; a grande solidão da pessoa original é uma das tragédias da vertigem e da eficiência.
A primeira tragédia que deve ser urgentemente reparada é a desvalorização de si próprio que o homem sente e que constitui o passo prévio à submissão e à massificação. Hoje o homem não se sente um pecador, crê que é uma engrenagem, o que é tragicamente pior. E esta profanação só pode ser curada pelo olhar que cada um dirige aos outros, não para avaliar os méritos da sua realização pessoal, ou para analisar qualquer dos seus actos. É um abraço que nos pode dar o gozo de pertencer a uma obra grande que nos inclua a todos.

Do nosso compromisso perante a orfandade pode surgir outra maneira de viver, em que o fechar-se sobre si mesmo seja um escândalo, em que o homem possa descobrir e criar uma existência diferente. A história é o maior conjunto de aberrações, guerras, perseguições, torturas e injustiças, mas, ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, milhões de homens e mulheres sacrificam-se para cuidarem dos mais desventurados. São estes que encarnam a resistência.
Trata-se agora de saber, como disse Camus, se o seu sacrifício é estéril ou fecundo, e esta é uma interrogação que tem de estar presente em cada coração, com a gravidade dos momentos decisivos. Nesta decisão reconheceremos o lugar onde cada um de nós é chamado a opor resistência; então, criar-se-ão espaços de liberdade que podem abrir horizontes até agora inesperados.
É uma ponte que teremos de atravessar, uma passagem. Não podemos ficar parados nem sequer deleitar-nos com a visão do abismo. Neste caminho sem saída que hoje enfrentamos, a recriação do homem e do seu mundo aparece-nos não como uma escolha entre outras mas como um gesto tão inadiável como o nascimento de uma criança quando chegou a sua hora.
É nas próprias crises que os homens encontram a força para as superarem. Assim o demonstraram tantos homens e mulheres que, tendo como único recurso a tenacidade e a coragem, lutaram e venceram as sangrentas tiranias do nosso continente. O ser humano sabe fazer dos obstáculos novos caminhos porque, para a vida, basta o espaço de uma fenda para renascer. Nesta tarefa, o primordial é negarmo-nos a asfixiar o que possamos iluminar de vida. Defender, como o fizeram heroicamente os povos ocupados, a tradição que nos diz o que o homem tem de sagrado. Não permitir que seja desperdiçada a graça dos pequenos momentos de liberdade de que podemos gozar: uma refeição partilhada com as pessoas que amamos, as criaturas a que damos amparo, uma caminhada entre as árvores, a gratidão de um abraço. Actos de coragem como saltar de uma casa em chamas. Estes não são actos racionais, nem é importante que o sejam, salvar-nos-emos pelos afectos.

O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria.


Ernesto Sabato- RESISTIR. Edição: Dom Quixote, 2005

Wednesday, December 16, 2009

Matemática

"Há sempre um erro novo à nossa espera.
Seja ele um cubo ou uma esfera, há que recebê-lo com alegria.
É um erro novo. Está à nossa espera."

Jaime Salazar Sampaio.


"A esfericidade ou ferocidade


qualidade de que gozam alguns

sólidos quando se viram

para nós."


Luiza Neto Jorge.

A VIDA É UMA FADA

há quem tenha
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.

embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.

antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.

ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.

Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses

Thursday, November 26, 2009

As primeiras palavras foram de amor- I

Se ele andava perdido nos labirintos do sonho
e eu marchava garbosamente pela estrada plana da realidade
como é que acabámos por apanhar as mesmas flores?

JSS

As primeiras palavras foram de amor- II

O tempo passou por cima de nós
está na hora de fazermos as malas
e, com um sorriso
deixarmos as coisas desacontecer

JSS

As primeiras palavras foram de amor-III

O doutor receitou-me uma crença qualquer
tomasse religião
senão…
fui eu agarrei-me ao senão
e cá estou.

JSS

As primeiras palavras foram de amor- IV

Disse não a quem sou
à vida e ao sonho
porém
um pequeno pássaro poisou-me no ombro
pode dizer-se não a um pássaro?

JSS

Perdi a cassette...

Perdi a cassette onde explicava todo o meu Teatro.
E a minha Vida. Também explicava, é claro, toda a minha Vida.
Por consequência, estou cá fora, à chuva, pleno de dúvidas e
hesitações.
Felizmente que algumas das minhas personagens,
ignorando estes deploráveis acontecimentos, trocaram-
-me as voltas e seguem em frente.
... Por breves instantes. Breves palavras. E longos silêncios.


Jaime Salazar Sampaio

Tuesday, November 17, 2009

Viajante imóvel

"Proponho à consideração das almas bem formadas o caso daquele jovem herdeiro a quem roubaram o relógio. Como irá ele agora calcular quantas horas faltam para se tornar um homem rico?

Uma lágrima, solicita-se aos corações compassivos, para este aspirante a órfão. Os que chorarem serão recompensados.

Chorem.

É um bom investimento."

Jaime Salazar Sampaio

SOL

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / - base do pensamento puro.


Quincey de pernas cruzadas
( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna )
estava sentado num puído sofá de couro.
Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante.
O sabor misturou-se no pensamento.
Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele.
Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência.
Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses.
As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos.
A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento.
O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar.
No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção.
Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro.
A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar.
Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo.
Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental.
Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real.
Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos.
Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. )
A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos.
A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos.
O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto.
A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus.
A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena.
Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes.
O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro.
Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.

Friday, April 11, 2008