"Há sempre um erro novo à nossa espera.
Seja ele um cubo ou uma esfera, há que recebê-lo com alegria.
É um erro novo. Está à nossa espera."
Jaime Salazar Sampaio.
"A esfericidade ou ferocidade
qualidade de que gozam alguns
sólidos quando se viram
para nós."
Luiza Neto Jorge.
Wednesday, December 16, 2009
A VIDA É UMA FADA
há quem tenha
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.
embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.
antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.
ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.
Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.
embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.
antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.
ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.
Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses
Thursday, November 26, 2009
As primeiras palavras foram de amor- I
Se ele andava perdido nos labirintos do sonho
e eu marchava garbosamente pela estrada plana da realidade
como é que acabámos por apanhar as mesmas flores?
JSS
e eu marchava garbosamente pela estrada plana da realidade
como é que acabámos por apanhar as mesmas flores?
JSS
As primeiras palavras foram de amor- II
O tempo passou por cima de nós
está na hora de fazermos as malas
e, com um sorriso
deixarmos as coisas desacontecer
JSS
está na hora de fazermos as malas
e, com um sorriso
deixarmos as coisas desacontecer
JSS
As primeiras palavras foram de amor-III
O doutor receitou-me uma crença qualquer
tomasse religião
senão…
fui eu agarrei-me ao senão
e cá estou.
JSS
tomasse religião
senão…
fui eu agarrei-me ao senão
e cá estou.
JSS
As primeiras palavras foram de amor- IV
Disse não a quem sou
à vida e ao sonho
porém
um pequeno pássaro poisou-me no ombro
pode dizer-se não a um pássaro?
JSS
à vida e ao sonho
porém
um pequeno pássaro poisou-me no ombro
pode dizer-se não a um pássaro?
JSS
Perdi a cassette...
Perdi a cassette onde explicava todo o meu Teatro.
E a minha Vida. Também explicava, é claro, toda a minha Vida.
Por consequência, estou cá fora, à chuva, pleno de dúvidas e
hesitações.
Felizmente que algumas das minhas personagens,
ignorando estes deploráveis acontecimentos, trocaram-
-me as voltas e seguem em frente.
... Por breves instantes. Breves palavras. E longos silêncios.
Jaime Salazar Sampaio
E a minha Vida. Também explicava, é claro, toda a minha Vida.
Por consequência, estou cá fora, à chuva, pleno de dúvidas e
hesitações.
Felizmente que algumas das minhas personagens,
ignorando estes deploráveis acontecimentos, trocaram-
-me as voltas e seguem em frente.
... Por breves instantes. Breves palavras. E longos silêncios.
Jaime Salazar Sampaio
Tuesday, November 17, 2009
Viajante imóvel
"Proponho à consideração das almas bem formadas o caso daquele jovem herdeiro a quem roubaram o relógio. Como irá ele agora calcular quantas horas faltam para se tornar um homem rico?
Uma lágrima, solicita-se aos corações compassivos, para este aspirante a órfão. Os que chorarem serão recompensados.
Chorem.
É um bom investimento."
Jaime Salazar Sampaio
Uma lágrima, solicita-se aos corações compassivos, para este aspirante a órfão. Os que chorarem serão recompensados.
Chorem.
É um bom investimento."
Jaime Salazar Sampaio
SOL
O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / - base do pensamento puro.
Quincey de pernas cruzadas
( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna )
estava sentado num puído sofá de couro.
Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante.
O sabor misturou-se no pensamento.
Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele.
Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência.
Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses.
As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos.
A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento.
O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar.
No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção.
Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro.
A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar.
Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo.
Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental.
Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real.
Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos.
Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. )
A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos.
A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos.
O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto.
A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus.
A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena.
Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes.
O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro.
Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.
Quincey de pernas cruzadas
( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna )
estava sentado num puído sofá de couro.
Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante.
O sabor misturou-se no pensamento.
Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele.
Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência.
Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses.
As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos.
A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento.
O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar.
No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção.
Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro.
A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar.
Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo.
Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental.
Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real.
Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos.
Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. )
A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos.
A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos.
O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto.
A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus.
A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena.
Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes.
O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro.
Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.
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