Wednesday, December 16, 2009

Matemática

"Há sempre um erro novo à nossa espera.
Seja ele um cubo ou uma esfera, há que recebê-lo com alegria.
É um erro novo. Está à nossa espera."

Jaime Salazar Sampaio.


"A esfericidade ou ferocidade


qualidade de que gozam alguns

sólidos quando se viram

para nós."


Luiza Neto Jorge.

A VIDA É UMA FADA

há quem tenha
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.

embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.

antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.

ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.

Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses

Thursday, November 26, 2009

As primeiras palavras foram de amor- I

Se ele andava perdido nos labirintos do sonho
e eu marchava garbosamente pela estrada plana da realidade
como é que acabámos por apanhar as mesmas flores?

JSS

As primeiras palavras foram de amor- II

O tempo passou por cima de nós
está na hora de fazermos as malas
e, com um sorriso
deixarmos as coisas desacontecer

JSS

As primeiras palavras foram de amor-III

O doutor receitou-me uma crença qualquer
tomasse religião
senão…
fui eu agarrei-me ao senão
e cá estou.

JSS

As primeiras palavras foram de amor- IV

Disse não a quem sou
à vida e ao sonho
porém
um pequeno pássaro poisou-me no ombro
pode dizer-se não a um pássaro?

JSS

Perdi a cassette...

Perdi a cassette onde explicava todo o meu Teatro.
E a minha Vida. Também explicava, é claro, toda a minha Vida.
Por consequência, estou cá fora, à chuva, pleno de dúvidas e
hesitações.
Felizmente que algumas das minhas personagens,
ignorando estes deploráveis acontecimentos, trocaram-
-me as voltas e seguem em frente.
... Por breves instantes. Breves palavras. E longos silêncios.


Jaime Salazar Sampaio

Tuesday, November 17, 2009

Viajante imóvel

"Proponho à consideração das almas bem formadas o caso daquele jovem herdeiro a quem roubaram o relógio. Como irá ele agora calcular quantas horas faltam para se tornar um homem rico?

Uma lágrima, solicita-se aos corações compassivos, para este aspirante a órfão. Os que chorarem serão recompensados.

Chorem.

É um bom investimento."

Jaime Salazar Sampaio

SOL

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / - base do pensamento puro.


Quincey de pernas cruzadas
( o tornozelo de um dos pés sobre o joelho de outra perna )
estava sentado num puído sofá de couro.
Estendeu a mão até ao bule chinês e deitou numa taça chá fumegante.
O sabor misturou-se no pensamento.
Tinha aprendido directamente o seu nome, o seu local de nascimento, a sua língua. Outros conhecimentos mais elaborados estavam, no entanto, desenhados fora da sua pele.
Crescera para essa zona mal definida e identificara alguns dos postulados necessários à sua sobrevivência.
Na selva tinha o andar seguro e silencioso do animal nocturno que caça as suas presas com a fortuna dos deuses.
As garras reflectem um átomo gigantesco dotado de saber e instintos supremos.
A mesma sensação percorria-o quando observava no ecrã profundo da noite o movimento dos astros. Seguia o rasto à procura das estrelas, à procura do alimento.
O acontecimento num dos casos era perseguir a vítima para matar.
No outro era partir da morte para descobrir e descodificar um princípio universal. Encheu e acendeu o cachimbo...envolto numa nuvem de fumo. As formas nunca tinham ocupado muito tempo da sua atenção.
Ouvira da boca de alguém, que demandara as rotas do Oriente e se fixara no Egipto, que as viagens começam na morte e acabam no sono. Olhou pela vidraça suja e viu o cisne branco cego de um olho elevar-se e cruzar as águas do lago. Parara de chover. As palavras do viajante, meditou, tinham um significado obscuro.
A acção filosófica iniciava-se na morte e terminava no sono... Ocorreu-lhe outro verbo metafísico: pensar.
Se estendesse, torcesse a cabeça para o campo psicológico, facilmente, detectaria movimentos sensoriais; ver... Fechado no meio do presente, se não tivesse acesso a outros mecanismos ( crias do Olímpico Urano ) ficaria eternamente fechado no interior do círculo.
Ver o quê? Ver o cisne cego? E o cisne cego vê o quê?
O interior do seu cérebro com os nervos acoplados num sistema real? Podia, bem sabia, repetir os gestos, alterar o estado mental.
Na parede oposta existia um grande espelho. Quincey podia ver Quincey ( a sua imagem ) desligado da sua vontade, ensaiar pequenas imprecisões, rupturas. O tempo, no entanto, actuava como instinto, não como conceito. E o instinto é implacável na sua ordem do real.
Levantou-se do sofá e saiu para a rua. Mas o que o esperava lá fora era um labirinto. Nas ruelas estreitas da casbah erra sem destino. Sombra contra sombra sob a égide dos músculos. Os seus passos caminham-no para a cidade dos mortos.
Esses habitantes que se distraem a pentear os cabelos uns dos outros. Sibilam pelas gengivas sinais de ouro. Dançam ao cair da noite. ( Os mortos dançarão mesmo? Que interessa se dançam ou não, se parecem possuir um pensamento que a nossa linguagem, por mais que se desenrole, não tocará nunca. )
A espécie humana, que mais não é que uma tribo, carece de uma linguagem de ouro para interpretar os sinais eternos. O pensamento esfarrapado, que cobre com tiras uma ou outra faixa da actividade humana, encontra uma textura resistente e maleável, na cidade dos mortos.
A imagem de Quincey reflectida no espelho tem, no caso da distorção, uma intensidade semelhante à oposição entre o pensamento da tribo ( estilhaço ) e o da cidade ( ordenado ). O núcleo do pensamento parece sediar-se na cidade dos mortos.
O passeio de Quincey prossegue nos e nos labirintos tortuosos da casbah fumegante, queimada pelo óleo, pela menta, pelo cordeiro e pelo ópio persa. Atraído pelo cheiro entra num botequim, iluminado pela chama impalpável de uma vela. Senta-se um tamborete, obscurecido, a um canto.
A chama misteriosa revela a prata difusa que, do exterior, se esbate na lâmina translúcida da porta. "Cisne Branco", assim se chama o botequim, onde indiferentemente se bebe vinho quente e menta. Pendurados na parede, dois retratos a óleo, que o proprietário afirma retratarem dois parentes seus.
A palidez da chama não deixa ver muito mais, mas Quincey percebe que aquela imagem possui um rasto alienígena.
Dirige-lhe ícone o pensamento - Os instrumentos utilizados pela filosofia ( raciocínios, jogos de linguagem ) operam aquém da elipse solar. O método mesmo quando transcendental, se não busca atingir o pensamento, embota os seres inteligentes.
O coto fica com a alma transfigurada, a lâmina enferrujada, a chama apaga-se. Amoníaco numa folha de papel... cristais... - base do pensamento puro.
Jaime Salazar Sampaio, inédito, Janeiro 2004.