Thursday, August 31, 2006

Ricardo Reis

Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual a beleza apeteço
Seja onde for, beleza.
Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
E não onde é preciso.
Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou não amo,
Nem a inocência inata quando se ama
Julgo postergada nisto.
Não no objecto, no modo está o amor
Logo que a ame, a qualquer cousa amo.
meu amor nela não reside, mas
Em meu amor.
Os deuses que nos deram este rumo
Também deram a flor pra que a colhêssemos
com melhor amor talvez colhamos
O que pra usar buscamos

Prazer da poesia

Do prazer da poesia falou T. S. Eliot considerando-o como a primeira finalidade social da poesia. Diz ele: [...] se queremos encontrar a finalidade social essencial da poesia, teremos de examinar primeiramente as suas funções mais óbvias, aquelas que terá de realizar, para realizar quaisquer que sejam. Julgo que a primeira sobre a qual podemos ter certeza é a de que a poesia deve dar prazer. Se me perguntarem que espécie de prazer, apenas poderei responder que aquela espécie de prazer que a poesia dá [...].
Luiz Serrano

Tuesday, August 29, 2006

Para o mar Maria ia

Para o mar Maria ia
Para o mar ia
Para o mar ia
Ao pisar a fina areia
Em hora de maré cheia
O mar ia até Maria
O mar ia até Maria
O mar ia
O mar ia

Maria
Mar em trânsito...

(eliane stoducto)

Palavras de Alceu a Safo

Ó cheia de pureza,
ó Safo coroada de violetas que docemente ris:
eu te diria de bom grado certa coisa,
se não fosse a vergonha que me impede.

Resposta de Safo a Alceu
Se quisesses tão só o bom e o belo,
se em tua boca más palavras não tramasses,
não haveria essa vergonha nos teus olhos e poderias exprimir-te francamente.

Monday, August 28, 2006

Quatro monges

Quatro monges decidiram meditar em silêncio completo, sem falar por duas semanas. Na noite do primeiro dia a vela começou a falhar e então apagou.O primeiro monge disse:- Oh, não! A vela apagou!O segundo comentou:- Não tínhamos que ficar em silêncio completo?O terceiro reclamou:- Por que vocês dois quebraram o silêncio?Finalmente o quarto afirmou, todo orgulhoso:- Aha! Eu sou o único que não falou!
conto zen

Não tenho nada

Um jovem monge aproximou-se de Chao-chou muito orgulhoso e eufórico, e disse:- Me desfiz de tudo o que tinha! Minhas mãos estão vazias e vim à vós com o coração sereno!- Então resta apenas desfazeres-te disso, e chegarás ao Zen.- Afirmou o mestre. - Mas, - replicou o monge - não tenho mais nada. Do que mais posso me desfazer?- Tudo bem, - comentou o sábio, - se tu queres manter o Nada que ainda carregas, fique com ele...
conto zen

Thursday, August 24, 2006

She`s waiting for another love















Ela é a noiva dos pássaros e transporta a mensagem da boa nova,
ela é a Vénus por todos sonhada,
a voraz caçadora de homens que a todos promete o prazer,
ela é a megera a prostituta e a sibila e renasce do gelo e quebra as vidraças.

microimpressões poéticas por Artur Paiva

imagem zanovi

Eugénio de Andrade I



Friday, August 18, 2006

Nao sei se é amor que tens











Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo.
Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.


Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?
Pessoa

Olhando o mar, sonho sem ter de quê











Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?



Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?Mas colhe rosas.
Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
Fernando Pessoa

A NOITE DISSOLVE OS HOMENS




















A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.


A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio.
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces,
aurora.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1983